12.1.12

Livro sobre o mito do sangue puro no Brasil

Jeca, porque não trabalhas?

Liga resenha sobre o livro Preconceito Racial em Portugal e no Brasil Colônia, de Maria Luiza Tucci Carneiro, publicada no Estadão anos atrás.

Jornal O Estado de São Paulo, 17 de Julho de 2005
O mito da purificação sanguínea no Brasil
Clássico de Maria Luiza Tucci ganha nova edição, revista e atualizada
Por: Elias Thomé Saliba

"Se avanço, sigam-me. Se recuo, matem-me. Se tombo, vinguem-me. Se o sangue tornar-se impuro. GALENOGAL!" Era assim, parodiando a saudação fascista de Mussolini, que um tônico milagroso prometia purificar o sangue de quem o bebesse todos os dias. O anúncio, veiculado no ano de 1939, nos jornais brasileiros, seria até pitoresco e divertido, se não antecipasse um surto paranóico de pureza racial que, poucos anos depois, com o nazismo, justificaria o extermínio de milhares de seres humanos.

Mas o anúncio também brincava com um mito profundamente enraizado na memória histórica brasileira: o mito da pureza do sangue, que esteve presente nos três primeiros séculos da colonização portuguesa no Brasil. Este é o tema de Preconceito Racial em Portugal e no Brasil Colônia, de Maria Luiza Tucci Carneiro, livro que se tornou clássico e que agora, 20 anos após sua primeira publicação, retorna às livrarias, em edição revista e atualizada.

Embasada em pesquisa minuciosa e bem documentada, a historiadora realiza uma verdadeira sondagem arqueológica do mito da purificação sanguínea, rastreando o surgimento do racismo, já institucionalizado na Península Ibérica desde o fim da Idade Média. A doutrina da pureza do sangue, contudo, foi criação dos tempos modernos e encontrou terreno mais fértil na Espanha do século 15: ela afirmava a existência de pessoas com sangue hereditariamente viciado, já que a ortodoxia ou a infidelidade dos antepassados judeus havia maculado o sangue dos seus descendentes.

O lado mais dramático de tal argumento, que beira a compulsão paranóica, é que, sob o patrocínio da Igreja e do Estado monárquico português, ele foi transformado num arcabouço legal que moldou corações e mentes durante séculos. Analisando centenas de documentos, principalmente os processos de habilitação, Maria Luiza desvenda os modos peculiares como a instituições, civis e eclesiásticas, investigavam a vida dos indivíduos, principalmente os judeus, pelos menos até a quarta geração.

Se nada conseguiam provar, mesmo considerando testemunhas (como se dizia, na época) de fama ou rumor, ainda assim era necessário o fidedigno testemunho de cristãos-velhos. Só após apresentar provas cabais de que a pessoa investigada não possuía quaisquer vestígios de "sangue infecto", ela poderia ser habilitada aos cargos civis, religiosos ou a títulos honoríficos.

Maria Luiza transcreve e detalha inúmeros documentos deste tipo, comprovando a existência de milhares de vítimas desse processo de exclusão, desde aqueles que foram imolados em autos de fé, até aqueles cristãos-novos que se tornaram verdadeiros párias sociais, obrigados compulsoriamente a viver sob uma dupla identidade. As vítimas principais desse longo processo de exclusão e discriminação, foram, na maioria dos casos, os próprios cristãos-novos - os quais, muitas vezes, serviram como simples pretextos para estender a discriminação contra negros, mulatos, judeus, mouros, ciganos ou indígenas.

Diabolizados por estigmas e rótulos humilhantes, ao longo de quase três séculos, engrossaram ainda aquela fileira de gente perseguida pela Inquisição - na qual já estavam centenas de pessoas indiciadas como feiticeiros, ímpios, bígamos, sodomitas, infiéis, ociosos e blasfemadores. Só havia uma diferença crucial: as condenações e sentenças contra os cristãos-novos, referiam-se explicitamente à sua origem étnica - e à ordem de prisão invariavelmente se acrescentava a frase "com confisco de bens". Como se vê, o processo de discriminação e intolerância foi, assim, manipulado seletivamente, variando de acordo com os interesses do momento.

Sustentada pela ordem legal e simbólica herdada de Portugal, tal discriminação se transfere para o Brasil, embora, nestas plagas, tais manifestações tenham sido amenizadas por artifícios da ordem legal - esta, oportunamente acionada quando os interesses assim o exigiam. De qualquer forma o mito da pureza do sangue, foi se desenvolvendo, difusamente disseminado pela força da legislação ou recoberto pelo manto dos valores cristãos.

Foram raras as vozes que se pronunciaram contra tais discriminações - como o Padre Antonio Vieira, D. Luis da Cunha, Antonio Nunes Ribeiro Sanches ou, o controvertido Mathias Ayres. Mais raros ainda foram os registros destas vozes contestadoras, já que também os que se atreviam a contar tais narrativas, acabaram silenciados por censuras e perseguições. O cenário só se modifica no final do século 18, quando a legislação do marquês de Pombal, inspirada no Iluminismo, elimina a distinção legal entre cristão-novo e cristão-velho.

Com a eliminação da legislação discriminatória, o preconceito esmaece um pouco, pelo menos na sua feição de pureza de sangue, ressurgindo no século seguinte, com a força dos argumentos pseudocientíficos do pensamento naturalista e com os episódios perpetrados pelo nazismo - já no século 20.

Essencial para se entender os primeiros capítulos da longa e dolorosa história da discriminação racial, Preconceito Racial em Portugal e no Brasil Colônia refaz os tortuosos caminhos da invenção de um mito, reafirmando - literalmente - a função desmistificadora da história.

Elias Thomé Saliba é historiador, autor de Raízes do Riso, entre outros.
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Sentiu firmeza?
500 anos de extermínio, antigamente quilombos hoje periferia.


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Um comentário:

Anônimo disse...

Artigo muito bem escrito. O tema da pureza de sangue é instigante e se revela atual, pois a intolerância ronda a sociedade "global" e é nos momentos de crise que algumas dessas tristes ideologias ganham força.

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