CIRCULAR PARA PRODUZIR: Novos Mecanismos de Socialização do Conhecimento
Giuseppe Cocco
Professor Titular da ESS/UFRJ, Coordenador do LABTeC/FCC/UFRJ e Pesquisador do IETS.
A crise da relação salarial como causa da crise do Estado
O período neoliberal que parece estar se esgotando nesses primeiros anos do século XXI, começou, há um pouco mais de vinte anos, como solução da crise do Estado keynesiano e fordista. Essa crise, nos anos 70, tinha a ver sobretudo com os déficits estruturais e crescentes dos orçamentos públicos (dos Estados centrais bem como dos estados e/ou regiões provinciais e das grandes cidades).
Hoje em dia sabemos que, contrariamente ao que prometiam, os governos de Mrs. Thatcher (na Grã-Bretanha) e de Ronald Reagan (nos Estados Unidos) não conseguiram reduzir os desequilíbrios das contas públicas, mas sabemos também que os neoliberais trabalharam a crise do Estado do ponto de vista das transformações das relações entre capital e trabalho. Eles tentaram construir um novo consenso social contra o pacto social corporativo de origem fordista e, indubitavelmente, eles conseguiram mobilizar neste sentido novas camadas sociais de classe média e de trabalhadores não estruturados dentro da relação salarial da grande fábrica.
As duas décadas neoliberais foram as da difusão das Novas Tecnologias da Informação e da Comunicação. Uma difusão que não poderíamos deixar de enfatizar como tendo sido o fruto de um processo altamente paradoxal: ao passo que as políticas neoliberais iam privatizando e rompendo com os mecanismos fordistas-keynesianos de universalização dos serviços públicos, o desenvolvimento das novas tecnologias digitais ia ser puxado, apesar das opções estratégicas das grandes firmas do setor, pela microeletrônica (os personnal computers) e pela progressiva conexão das máquinas digitais pessoais numa rede cuja extensão não terá outro limite que o das próprias redes sociais. Com efeito, para além das questões ideológicas, o projeto neoliberal pretendia constituir o mercado num novo padrão de universalização dos direitos mais eficaz do que os mecanismos de universalização padronizados pela relação salarial formal.
Na era da grande indústria fordista, o fato de "ter direito aos direitos" estava completamente subordinado à integração produtiva dentro da relação salarial. A integração cidadã era secundária e derivada com relação à integração produtiva. Ter clareza com relação a isso permite desmontar o mito de que os desníveis em termos de universalização dos direitos entre as economias centrais e as periféricas fossem a conseqüência dos desníveis de democracia formal que caracterizariam os países do Norte (desenvolvidos) com relação aos do Sul (subdesenvolvidos). Muito pelo contrário, a universalização dos direitos era, antes de tudo, universalização da relação salarial e a clivagem entre o "Norte" e o "Sul" está inscrita, muito antes que na forma Estado, nas constituições materiais produzidas pelos processos de assalariamento constrangido que caracterizaram os países do Sul, e em particular o Brasil.
Isso significa que, para ter acesso ao conjunto de bens que constituíam a materialidade dos direitos (moradia, saúde e ensino públicos, bens de consumo duráveis e serviços públicos: o telefone por exemplo!), era preciso ser um trabalhador assalariado, antes nas camadas de trabalho intelectual de controle e, depois (isso apenas nos países centrais), no trabalho operário de produção. Era porque se estava integrado a esta relação de produção que se tinha acesso aos bens e aos serviços. No Brasil (de maneira emblemática), houve sim um processo de industrialização e, com ele, a edificação de um complexo sistema estatal de serviços que abasteceram um consumo cada vez mais sofisticado por parte das classes médias e, no período mais recente, de porções restritas do operariado (que, aliás, chegou a constituir-se em maioria social apenas em algumas regiões da Grande São Paulo). Desta maneira, ao contrário dos países centrais onde o acesso a esses bens se universalizou, no Brasil eles ficaram restritos às classes médias e, às vezes, como no caso do telefone1 , às camadas mais privilegiadas da sociedade. A relação salarial de tipo fordista (formal, da grande fábrica, com negociação sindical) estruturava, pois, o acesso à cidadania material. Quando ela era limitada a uma porção da sociedade, seu sistema de consumo também se encontrava restrito e a intensa intervenção do Estado (na regulação dos mercados pela proteção da indústria nacional e pelo controle da produção e distribuição dos serviços) não mudava o quadro em absolutamente nada. Ou seja, o que fazia diferença não eram a constituição formal e o nível de intervenção estatal, mas a constituição material (as bases sociais da dita intervenção estatal).
Crise e nova centralidade do trabalho vivo
A reestruturação industrial, a emergência de um regime de acumulação globalizado, baseado na produção de conhecimentos e num trabalho vivo (cada vez mais intelectualizado e comunicativo) podem (e devem) ser pensados como processos contraditórios, nos quais a contradição não é a que os opõem ao passado das homogeneidades fabris, mas a que se encontra no presente das novas formas de exploração e da composição técnica do trabalho.
A passagem para o pós-fordismo indica, antes de tudo, a instalação de novas relações entre a fábrica e o território, entre as forças de trabalho e a sociedade, entre os serviços e os usuários. O paradigma fundamental do pós-fordismo como modo de produção largamente socializado, baseado portanto sobre a comunicação social (esta é que alimenta a inovação, as tecnologias da informação e a chamada economia do conhecimento) de atores flexíveis e móveis, é o do trabalho imaterial.
A emergência do trabalho imaterial determina, portanto, uma transformação radical dos papéis, das relações e das hierarquias que caracterizam e estruturam o sistema industrial e sobretudo sua inserção no espaço metropolitano. Pois é a tradicional separação entre produção e reprodução que entra em crise. O paradigma pós-fordista define-se como "paradigma social" exatamente porque o novo modo de produção integra estes dois momentos e faz com que a circulação e a comunicação se tornem imediatamente produtivas. O trabalho imaterial tira sua centralidade de sua ambivalência, ou seja, de seu funcionamento como interface entre esses dois momentos.
Trabalho imaterial, capitalismo cognitivo e espaço público
Em função desta centralidade do trabalho vivo podemos entender a força do projeto neoliberal, bem como a lógica do capitalismo cognitivo e/ou da chamada economia do conhecimento.
A dinâmica paradoxal do capitalismo cognitivo é emblemática. Com efeito, na era do conhecimento, a valorização do capital passa por um jogo de constituição do tempo que os economistas definem como o fato da oposição entre aceleração da difusão e desaceleração da socialização dos produtos do trabalho cognitivo. Por um lado, o capital pretende estabelecer o domínio do futuro, de um tempo constituído pela aceleração da difusão (que aumenta o valor). Pelo outro, o capital precisa enfrentar a potência do devir, desacelerar e fechar o tempo constituinte da socialização do trabalho vivo (que diminui o valor).
A equação capitalista entre uma difusão cada vez mais rápida em face de uma socialização que deveria ser cada vez mais lenta se faz a custos incalculáveis. Os produtos do trabalho cognitivo (ou imaterial) não precisam da relação de capital para serem produzidos e não pertencem mais ao capital, pois eles coincidem com as próprias relações sociais de cooperação. A dimensão privada da riqueza como valor se sustenta na base da afirmação abstrata e arbitrária do direito de propriedade. Esta "sustentação" privada da riqueza para manter a extração de valor acaba reduzindo dramaticamente o potencial produtivo de riqueza.
Para se tornar valor, a riqueza deve ser difusa (pública), mas não pode ser socializada (comum). O público e o comum são mantidos separados. Esta é a força (o público, a difusão: os celulares para todo o mundo; a internet grátis; o baixíssimo custo dos hardwares e ainda mais baixo dos softwares) e a fraqueza (a discriminação na base do poder de compra do uso real dos serviços; os obstáculos à proliferação criativa dos usos das informações e de suas ferramentas impostos pela lógica proprietária do copyright) da proposta de universalização das condições de ter direito aos direitos via mercado. Mas isso não deve permitir que se esqueça o quanto o capitalismo cognitivo procura (e precisa) o/do público e como isso pode ser um vetor de inovação paradoxal naquelas situações, como a brasileira, em que os dispositivos de distribuição da riqueza e de acesso aos serviços eram e são, na base da mediação de um Estado autoritário, burocrático, racista e tecnocrático, ainda mais atrasados (menos públicos e em nada comuns) do que os mecanismos que o mercado oferece.
A equação do capitalismo cognitivo é paradoxal e se reproduz a custos incalculáveis, pois a produção da riqueza não pode mais se separar das condições de sua fruição: produzir o mundo é a mesma coisa que fruí-lo. A substância da riqueza depende da relação íntima e inquebrável de suas dimensões públicas e comuns: é o que emerge nos primeiros passos de um novo direito público, em particular na lógica pública da proteção do trabalho comum (da socialização). A lógica pública (do copyleft? 3 ) se opõe à lógica proprietária (do copyright) à medida que ela se qualifica pela proteção do comum, ou seja, dos produtos da atividade humana (por exemplo, as externalidades positivas e os usos inovadores). Os novos territórios produtivos são justamente os desenhados pela convergência do público e do comum.
Socializar a cognição: collecting x downloading
Tomemos o campo tecnológico como exemplo. Esfera plena do capitalismo cognitivo, para produzir tecnologia, obrigatoriamente, é necessário a livre circulação da informação, visto que na atual fase capitalista, o fruto do trabalho torna-se um medium, ou seja, mercadorias que possibilitam a comunicação entre os homens. Todas as mercadorias precisam comunicar cognição.
No capitalismo cognitivo, é a memória que é posta a trabalhar. A individual e a coletiva. Um usuário de Internet que queira produzir um site se guia por idéias surgidas a partir de seu grau de navegação na Internet e também pelo que existe na memória coletiva, ou seja, ele pesquisa sites semelhantes ao que quer criar, neles vê os conteúdos que não podem deixar de estar incluídos no seu site, se vincula a determinados sites criando uma seção de link, troca emails com alguns webdesigners para que eles possam avaliar o site que tenha criado, enfim, o trabalho cognitivo faz da produção uma comunicação com o outro. No trabalho cognitivo, todo sujeito está sujeito a outro e é ao mesmo tempo sujeito para alguém. E, neste sentido, há uma transformação no que seja propriedade. O uso da propriedade é uma propriedade do uso no capitalismo cognitivo. Quem usa é proprietário, porque o consumo de um bem imaterial, ao contrário do que dizia Marx sobre o consumo, não é final. Ou seja, não se destrói o produto no ato do consumo. O que é destruído é o seu invólucro, mas a informação é retida e potencialmente pode ser multiplicada. A condição de ser "pirata" não faz dos bens adquiridos algo que não pertença aos indivíduos. O sentido de autoria também parece estar sendo modificado, tanto quanto parece ser o sentido de produção/recepção na comunicação. Retomemos o copyleft.
A idéia central do copyleft, criado pelos programadores de software livre?, é dar a qualquer um a permissão para executar, copiar, modificar um programa e redistribuir versões modificadas - mas não se é dado ao autor a permissão para somar restrições de sua propriedade. Antes de ser uma provocação ao copyright, o copyleft cria um verdadeiro axioma ao preservar a propriedade intelectual do produto (reconhecimento do autor) negando a propriedade do produto intelectual (o produto é coletivo).
Assim, surge uma mediação fundamental para compreendermos o sentido do trabalhador do capitalismo cognitivo: a autoridade que desautoriza. Isto significa que o trabalhador cognitivo é formado por um ethos que, em seu núcleo, está o desejo de desautorizar qualquer instituição ou indivíduo do direito de monopolizar informações, visto que precisa delas para produzir.
Duas tendências de distribuição de conhecimento são encontradas no interior do capitalismo cognitivo. A primeira é focada no modelo do collecting, em que as obras, informações e dados estocados possuem um caráter fixo e intransferível. É um modelo mais utilizado por instituições como bibliotecas, museus, centros de informação, sistemas de crédito, indústrias culturais etc. Ele aprisiona a informação para fins comerciais / proprietários. Nesse modelo ainda a informação é orientada por uma racionalização que a submete a um conjunto de regras formais (indexação, classificação, reunião, formatação, subscrição etc). - determinantes para o estoque ou armazenamento. Nesse modelo, comunica-se mais a informação da classificação do que a informação classificada. O usuário tem acesso ao abstract, porém, a informação real, o produto real, só mediante a pagamento, em dinheiro ou preenchendo um cadastro com os seus dados, gostos e estilo de vida. Na prática, o que se estabelece é uma troca de informação somente entre atores privilegiados.
A segunda surgiu no interior do campo tecnológico e foi socializada para outras esferas da produção. Graças a um trabalho coletivo, foram criadas dezenas de tecnologias que possibilitaram a transferência de textos, imagens, áudio, vídeos de um computador para outro, os chamados programas peer-to-peer. Estes permitirão a implantação de um modelo alternativo ao collecting, intitulado de downloading, de caráter móvel e transferível, que distribuem bens e conhecimento de forma livre, sem intermediários. A tentativa de libertação do confinamento e a fuga dos usuários dos aparatos que confinam a informação demandam desses sujeitos a criação de um modo de comunicar próprio e um medium próprio.
O modelo do downloading nos permite especular que, bem diferente do capital, o trabalho cognitivo traz a possibilidade de sujeitos comunicativos tomarem a produção midiática para si. Essa talvez seja a ação que está no núcleo da inversão do processo de desigualdade social no campo do conhecimento: tomar a produção de medium para si. E fazê-lo circular, para então começar a produção. Antes do lema nefasto aprender a aprender, precisamos aprender a circular aprendizagem. Socializar um bem comum.
Tá valendo!
-> Arquivo: 13.1.2006 : The Business Experiment
-> Arquivo: 17.10.2005 : CLAP Conhecimento Livre e Aberto de Produção
-> Arquivo: 22.6.2005 : Telecentros auto sustentados e planos de negócios copyleft
-> Taba : Cachimbando
-> Compartilhando Banners : Livro - The Cathedral and the Bazaar